Não quero me meter na seara dos outros, mas encontrei um texto sobre o livro “Leite Derramado”, de Chico Buarque, que escrevi antes de sair em férias, em junho, e, pra variar, não foi aproveitado por motivo de espaço, então vou dividi-lo com você.
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É fato que há um paradoxo na nova obra escrita por Chico Buarque. Isso porque seu quarto livro, “Leite Derramado” (Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 36), tem o título que é um dito popular, mas sua escrita, como lhe é particular, é rebuscada.
Depois de um vácuo de seis anos, uma vez que seu último livro, “Budapeste”, foi lançado em 2003, Chico ficou debruçado um ano em sua nova obra. “Leite Derramado” conta a história de um homem centenário que, internado em um hospital, narra à enfermeira (e a quem se interessar) as suas memórias que remontam o início do século 20 e se misturam com a história do Brasil.
A escrita rebuscada, aliás, é reforçada com a intercalação de termos em francês e, em uma passagem, justifica: “Lá em casa como em todas as boas casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era assunto de família.” Um exemplo, aliás, aparece logo em seguida: “Falar merde alors, até a hora da morte. Porque tudo é mesmo uma merda, mas depois melhora um pouco, quando de noite a namorada vem.”
Ao decorrer de 23 capítulos, Chico Buarque segue contando a história sempre em primeira pessoa, sem diálogos, sem parágrafos e com algumas vírgulas colocadas erroneamente, mas dando voz ao seu narrador e protagonista, que é um idoso cheio de preconceitos com relação à classe, raça e ao sexo e que imagina ainda estar no tempo em que o sobrenome resolvia muitas coisas, e maltratar os negros e os empregados era coisa de gente fina.
Sem qualquer preocupação com ordem cronológica, o autor descreve como foi o seu passado, seus ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República e sobre sua esposa, filha, seu neto, bisneto, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. E pede desculpas por sua memória. “Com a idade a gente dá para repetir velhas lembranças, e as que menos gostamos de revolver são as que persistem na mente com maior nitidez.”
Neste quesito, quando começa a misturar os parentes do protagonista, uma vez que todos têm o mesmo nome, chega a confundir o leitor e pode fazê-lo retornar a algum ponto para se lembrar de quem se trata. Ou então, fazê-lo desistir de entender a árvore genealógica.
E é justamente este tratamento da narrativa que chama atenção, uma vez que é como se o leitor se sentasse ao lado do personagem acamado e o ouvisse contar as suas histórias sem parar. Quando interrompido por qualquer motivo, seja por uma enfermeira que entra no quarto para aplicar a injeção ou os maqueiros para levá-lo para fazer mais um exame, ele volta a contar a história, partindo do mesmo ponto ou de outro distante.
A expectativa do leitor em descobrir o que o fez ser levado para o hospital não termina com o livro, uma vez que o problema não é sanado. Mas ainda assim é possível que se prenda até o final para acompanhar o texto bem escrito (e já usando a nova reforma ortográfica), com trechos cheios de entusiasmo e poesia. É como quando o lado compositor do cantor/autor aflora, tal como em suas músicas. “Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco” encerra o primeiro capítulo Mais adiante ele ataca o seu lado machão, quando fala do ciúme: “Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas.”
“Leite Derramado” não mostra quanto tempo o protagonista passou no hospital, mas remete ao romance inglês, “Mr. Phillips”, de John Lanchester (Editora Best Seller, 2003) sobre um contador que é demitido do trabalho, mas não conta à família e, então, sai para trabalhar do mesmo jeito e visita ruas de Londres desconhecidas e, com humor e sarcasmo, reflete sobre os temas que mais o afligem.
Quando recebeu suas primeiras críticas, Chico se lembra de uma que, aliás, destacou em exposição realizada em 2004. Era algo que o jornalista escreveu para insultá-lo dizendo que o sambista estava escrevendo um livro. E Chico rebateu, dizendo que não se tratava de uma ofensa e que ele era, sim, um “sambista que escrevia livros”. A contar que todos os outros três livros de Chico Buarque foram para as telas do cinema (“Estorvo”, “Benjamin” e o recente “Budapeste”), com “Leite Derramado” não deve ser diferente. É o tipo de obra na qual ao lê-la, já se tem ideia das imagens vivas na tela grande.