“Ensaio Sobre a Cegueira”, livro escrito pelo português José Saramago, traz uma história comovente e ao mesmo tempo incômoda, pois trata-se de uma epidemia de uma cegueira que atingiu uma cidade inteira. Ao decorrer dos dias, conforme as pessoas vão “pegando”, é possível conhecer as reações humanas. Para o cinema, o diretor Fernando Meirelles aceitou a empreitada de filmar a história que, na versão original (em inglês, já que é a origem dos produtores), chama-se “Blindness”.
No início, em uma movimentada metrópole, um homem (Yoshino Kimura) está dirigindo e, de repente, não consegue avançar o semáforo porque ficou cego, de uma cegueira branca, leitosa. Quando consegue chegar em casa, vai com a esposa ao médico, que afirma não ter nada. Daí em diante, muitas pessoas passam a não ver e seguem para um local determinado pelo governo, onde ficarão em quarentena.
E é a partir daí que começa a segunda parte da trama, ainda mais incômoda, com imagens densas que desafiam a dignidade do ser humano, quando os obriga, cegos, a viverem com outras pessoas também cegas, que nunca conheceram na vida. E eles sofrem com a falta de comida e de medicamento, andam nus pelos corredores (afinal, apenas o espectador e um personagem podem ver – a Mulher do Médico, vivida por Julianne Moore). Ainda assim, ela não conta aos demais (exceto ao marido, personagem de Mark Ruffalo), que pode enxergar. Assim como no livro, os personagens não têm nomes.
Com roteiro escrito pelo canadense Don McKellar, o longa-metragem mostra em detalhes o sofrimento das pessoas, situa o espectador no local onde eles ficam “internados”, principalmente por conta da sujeira proveniente das fezes, da urina, além dos corpos daqueles que morrem que vão ficando pelo chão, e da violência dos estupros, em cenas fortes, mas que não chocam o espectador pois apenas induz. Essa seqüência, aliás, conforme disse Meirelles em entrevista, foi cortada após os “screening tests”, mas poderá ser vista no DVD.
Com fotografia de César Charlone, o mesmo que acompanhou Meirelles em “Cidade de Deus”, o espectador quase pode ver tal como o personagem, já que o excesso de branco e a falta de foco dão essa impressão. Como foi filmado em diversas cidades, o filme não conta ao espectador onde a narrativa se passa, mas as imagens possuem orientação urbana. No início, as imagens, que lembram videoclipe (uma característica de Meirelles que pode ser conferida tanto em “Cidade de Deus” como em “O Jardineiro Fiel”), mostram o caos no trânsito, o barulho nas ruas. No entanto, é possível identificar que as cenas externas são filmadas em São Paulo. É fácil reconhecer a Avenida Paulista, a Ponte Estaiada antes de ficar pronta, a Marginal do Pinheiros, mas ao mesmo tempo agride o espectador porque as placas dos carros são maquiadas e a viatura da “Police” possui chapa de três letras e quatro números (exatamente como as brasileiras).
Ao mesmo tempo em que os personagens são estranhos, pelo fato de estarem sendo testados, o espectador consegue eleger um para o qual torcer. E boas interpretações, aliás, não faltam. Nisso, há de se dar todo o mérito a Meirelles, que pecou na direção de arte (que mostra, por exemplo, televisores antigos e carros modernos), mas deu um banho em fotografia e direção de atores.
No elenco, também está Alice Braga, que trabalhou com Meirelles em “Cidade de Deus” e interpreta a Mulher dos Óculos Escuros. Um dos destaques, porém, é o personagem Rei da Ala 3, interpretado por Gael García Bernal. Isso porque ele é apresentado como Barman do hotel, mas depois, quando vai para a quarentena, passa a controlar a comida e a exigir jóias e mulheres em troca. Um dos momentos engraçados é quando ele pinta as unhas e imita Steve Wonder cantando “I just call to say I love you”.
Além de São Paulo, o longa foi filmado no Canadá (em uma prisão desativada) e nas ruas de Montevidéu, no Uruguai.